Por Thiago Cortês
As confusões que sobressaltam a igreja evangélica acontecem em uma freqüência tão grande que, ao invés de espanto, agora causam em mim bocejos. Prefiro dormir. Desligo a TV, viro a página do jornal e pulo os links sempre que tropeço na polêmica gospel da semana.
Fui despertado do meu sono profundo pela repercussão da entrevista de Caio Fábio ao humorista Danilo Gentilli. Apropriadamente, o herege cinqüentão foi convidado a falar de suas ideias em um talk-show que privilegia o humor.
Sentiu-se em casa, acredito.
Não pretendo sintetizar os absurdos proferidos pelo ex-garoto-prodígio do protestantismo brasileiro. Caio Fábio é um herege. Como todo bom herege, ele é divertido. É um sujeito engraçado, mesmo quando não tem a intenção de sê-lo.Provoca risadas espontâneas.
Ele é um misto de vaidade adolescente, ambição desgovernada e complexo messiânico. Fala sempre em tom professoral, solene, didático. Mesmo quando ressuscita velhas heresias de teólogos liberais que há décadas são conhecidos e discutidos nos cursos de teologia.As imposturas de Caio Fábio são, por força da lógica, desimportantes. Só o que salta aos olhos em tudo isso é o fato de que os evangélicos são facilmente impressionáveis. Nós damos maior valor aos moleques malcriados do que aos veteranos soldados a serviço do Reino.
Há pessoas que precisam falar muito para nos convencer de que são o que são. Outras deixam que seus atos falem por elas. Aliás, não por elas: deixam que Deus fale por seus gestos.
É o caso do Dr. Russel Shedd. O humilde missionário conquistou minha atenção e respeito quando eu ainda era uma criança. E mesmo antes de tê-lo conhecido oficialmente.
Quando freqüentava a Primeira Igreja Batista de Guaianazes, meus pais explicaram que um missionário “muito importante” iria pregar lá certa noite. Além de dedicar sua vida às missões, era um sábio que havia fundado uma editora para contribuir com a evangelização no Brasil.
Não dei a mínima atenção. Até que meu pai acrescentou: “a gente está preocupado porque ele vem de trem”. Isso mesmo. O já idoso Dr. Shedd chegaria de trem, balançando-se nas velhas composições da CPTM. Sem vaidade. Sem fazer propaganda da sua humildade.
Um dos cérebros mais produtivos da igreja evangélica brasileira, talvez nosso missionário mais ilustre, sempre se recusou a receber qualquer tipo de privilégio. Nunca permitiu que o fossem buscar de carro. Dizia que não era nenhuma autoridade.
Sem me dizer nada, apenas com seu gesto simples, Russel Shedd se tornou para mim uma autoridade moral. Antes mesmo de ouvi-lo, ele me comunicou a grandeza da sua fé.
E mais: o homem que inspirou a publicação de uma edição da Bíblia que leva o seu nome jamais apareceu na TV censurando seus irmãos de fé, tratando-os como retardados.
Russel Shedd nunca se arrogou o direito de aparecer na mídia secular para maldizer os evangélicos que discordam dele. O octogenário missionário batista jamais transpareceu prepotência por causa da sua erudição ou ressentimento pela falta de reconhecimento.
Aliás, duvido que algum dia o velho Shedd tenha pensado em reconhecimento. Não porque ele é virtuoso, mas porque é um daqueles crentes teimosos de antigamente. Ele nunca superou a fase do “sou apenas um humilde seguidor de um pobre carpinteiro judeu”.
Russel Shedd teima em permanecer neste nível de comprometimento. Teima em não fazer marketing de si mesmo. Teima em não aderir ao falatório típico do mundo gospel. Teima em comunicar verdades profundas através dos gestos mais simples.
Certa vez, ele declarou: “O problema do mundo livre é este: não custa nada ser cristão. Logo, não custa nada abandonar o cristianismo”. Fingir-se de cristão ideal em determinada época, falhar e depois se reinventar como herege também não custa nada.
Ao contrário, é um tipo de marketing que rende muito. É o tipo de impostura que impressiona os impressionáveis. Que alimenta a vulgar disputa entre os evangélicos que estão sempre à procura de um novo profeta e os que estão sempre à caça de um novo herege.
Em tempos de Caio Fábio, lembremos de Russel Shedd.